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terça-feira, 22 de junho de 2010

"(...) tivera muito tempo para formular as minhas opiniões sobre a divindade desde aquela noite no chão da casa de banho quando falei directamente com Deus pela primeira vez. Contudo eu nao estava interessada em desenvolver os meus pontos de vista sobre teologia. Estava apenas interessada em salvar a minha vida. Tinha finalmente percebido que chegara a um estado de desespero capaz de ameaçar a minha integridade física, e ocorreu-me que às vezes as pessoas nesses estado pediam ajuda a Deus. Creio que tinha lido isso algures num livro.
Falei com o criador do Universo como se tivessemos acabado de ser apresentados numa festa.
"Desculpa incomodar-te a esta hora da noite. Mas estou em grandes apuros. Desculpa nunca antes ter falado directamente contigo, mas espero nunca ter deixado de expressar a minha gratidão por todas as bençãos que me concedeste. (...) Preciso de uma resposta, porfavor, diz-me o que fazer. Porfavor, diz-me o que fazer...."
Repeti esta frase vezes sem conta, não sei quantas vezes implorei, só sei que fiz como alguém que implora pela própria vida. E o choro continuou indefinidamente. Até que parou de forma um pouco abrupta. E notei que já não estava a chorar. Levantei a testa do chão e sentei-me surpreendida, perguntando-me se veria agora o Grande Ser responsável por aquele feito. Mas não havia ali ninguém na casa da banho. Estava sozinha, mas não verdadeiramente sozinha. Estava rodeada por algo que só consigo descrever como uma pequena bolsa de silêncio - um silêncio tão raro qe eu nem queria respirar, com medo de o afastar. Sentia-me absolutamente tranquila. Não conseguia recordar-me de alguma vez ter sentido tamanha tranquilidade.
Depois ouvi uma voz, (...), a voz disse "Volta para a cama, Liz".
Respirei.
Tornou-se imediatamente óbvio que era a única coisa a fazer. A verdadeira sabedoria dá a única resposta possível em cada momento, e voltar para a cama era a única resposta possível naquela noite. Volta para a cama, porque não precisas de saber a derradeira resposta neste momento, às três da manhã de uma quinta-feira de Novembro. Volta para a cama, porque a única coisa que precisas de fazer para já é descansar e tomar bem conta de ti até saberes a resposta. Volta para a cama para, quando a tempestade voltar, estares suficientemente forte para lidares com ela. Volta para a cama, Liz.
Se tivesse tido forma de saber que as coisas iam ficar muito piores antes disso acontecer, não sei se teria conseguido dormir muito naquela noite. Mas sete penosos meses depois deixei mesmo o meu marido.
Passaram-se meses. A minha vida parecia suspensa no limbo enquanto aguardava pela libertação e pelas condições da mesma. Viviamos separados (ele tinha-se mudado pra o nosso apartamento em Manhattan), mas não estava nada resolvido. (...)
Depois, surgiu o David.
Todas as complicações e traumas daquele terrível divórcio foram multiplicados pelo drama do David, o homem por quem me apaixonei quando terminei o meu casamento. Disse que me apaixonei pelo David? O que eu queria dizer era que saí do meu casamento e mergulhei nos braços do David exactamente da mesma maneira como nos desenhos humorísticos um artista de circo mergulha de uma plataforma alta directamente num pequeno balde de água, desaparecendo completamente. Agarrei-me ao David para fugir do casamento como se ele fosse o último helicóptero a sair de Saigão. Depositei nele todas as esperanças de salvação e felicidade. E sim, é verdade que o amava. Mas se conseguisse pensar numa palavra mais forte do que desesperadamente para descrever a forma como o amava, usá-la-ia aqui, e o amor desesperado é sempre a forma mais penosa de amar.
Assim que deixei o meu marido, fui logo viver com o David. Ele era e é um belo homem. Natural de Nova Iorque, actor e escritor, com aqueles enormes olhos castanhos e húmidos, que sempre me perturbaram. Expedito, indepentende, vegetariano, desbocado, espiritual, sedutor. O defesa novato e atraente eleito por Deus. Maior do que a vida. Maior do que o grande. Ou pelo menos, era assim que eu o via. A primeira vez que a minha amiga Susan me ouviu falar dele, viu num relance febre que se apoderava do meu rosto e disse:
- Oh meu Deus querida, estás metida em apuros!
No amor desesperado é sempre assim não é? No amor desesperado, inventamos sempre a maneira de ser dos nossos parceiros, exigindo que sejam aquilo que precisamos e sentindo-nos depois desolados quando eles se recusam a representar o papel que lhes destinámos.
Mas a verdade é que passámos bons momentos juntos durante aqueles primeiros meses em que ele ainda era o meu herói romântico e eu a personificação do seu sonho. Havia excitação e compatibilidade a rodos, ao ponto de inventarmos a nossa própria linguagem. Faziámos viagens reais e imaginárias. Subíamos ao topo de umas coisas, nadávamos até ao fundo de outras, planeávamos as viagens que faríamos pelo mundo fora. Divertiamo-nos mais enquanto estávamos na fila da Direcção Geral de Viação do que a maioria dos casais em plena lua-de-mel. Traçámos objectivos, fizemos votos, promessas e jantámos juntos. Ele lia-me livros e lavava a minha roupa. (A primeira vez que isto aconteceu, telefonei à Susan para lhe contar aquela maravilha, como se tivesse acabado de ver um camelo a usar uma cabina telefónica. Disse-lhe "Um homem pôs a minha roupa a lavar! E até lavou à mão a roupa delicada!" e ela repetiu "Oh meu deus querida, estás mesmo em apuros!").
O meu primeiro verão com o David parecia uma montagem das cenas apaixonadas de todos os filmes românticos, desde o salpicar da rebentação do mar à corrida de mãos dadas pelas planícies douradas ao pôr do sol. Nessa altura ainda pensava que o meu divórcio podia correr bem, embora tivesse concedido uma trégua ao meu marido durante o verão para termos ambos tempo para arrefecer os ânimos. De qualquer forma, era muito fácil não pensar naquela perda no meio de uma felicidade tão grande. Depois, aquele verão (também conhecido por adiamento da realidade) terminou.
A 9 de Setembro de 2001, encontrei-me frente a frente com o meu marido pela última vez, não percebendo que quaisquer futuros encontros precisariam de ser mediados por advogados. Jantámos num restaurante e eu tentei falar sobre a nossa separação, mas não fizemos outra coisa senão discutir. Ele disse-me que eu era uma mentirosa e uma traidora, que me odiava e que nunca mais me dirigiria a palavra. Duas manhãs depois, acordei após uma noite de sono agitado para descobrir que aviões sequestrados por piratas do ar tinham enbatido nos dois edíficios mais altos da minha cidade, ao mesmo tempo que tudo aquilo que outrora fora considerado invencível estava agora transformado numa avalancha de escombros. Telefonei ao meu marido para me certificar que ele estava bem e chorámos juntos aquele desastre, mas não voltei para ele. Durante essa semana, quando toda a gente da cidade de Nova Iorque punha de lado a animosidade em defesa por tão grande tragédia, ainda assim, não voltei para o meu marido. Foi dessa forma que soubemos que estava tudo definitivamente acabado entre nós.
Não é um grande exagero da minha parte se vos disser que não dormi nos quatro meses seguintes.
Pensava que já antes tinha ficado desfeita, mas nesse momento (em sintonia com o aparente colapso do mundo inteiro) a minha vida desmoronou por completo. Estremeço ao pensar naquilo que fiz o David passar durante os meses em que vivemos juntos, logo a seguir ao 11 de Setembro e à minha separação. Imaginem a sua surpresa ao descobrir que a mulher mais feliz e confiante que alguma vez conhecera não passava afinal de um poço de dor insondável. Mais uma vez, não conseguia parar de chorar. Foi nesta altura que ele começou a recuar, e também foi aí que vi o outro lado do meu herói romântico: um David solitário como um náufrago, frio e que precisava de mais espaço do que uma manada de bisontes americanos.
Provavelmente este súbito retrocesso emocional de David teria sido uma catástrofe para mim, mesmo nas melhores circunstancias, já que eu sou a forma de vida mais afectuosa do planeta (uma espécie de cruzamento entre um golden retriever e um ganso selvagem), mas aquelas eram as piores circunstancias. Estava abatida e dependente , a precisar de mais cuidados do que trigémeos prematuros. O seu afastamento só contribuiu para me deixar mais carente, e este meu estado só fazia com que ele se afastasse ainda mais. Não passou muito tempo até que ele o fizesse sob o fogo cerrado dos meus apelos chorosos: "Onde vais? O que nos aconteceu?!"
(Dica amorosa: os homens ADORAM isto.)
A verdade é que me tinha viciado no David (em minha defesa, devo dizer que ele tinha fomentado isso, sendo uma espécie de homem fatal), e agora que a sua atenção começava a vacilar, estava a sofrer as previsíveis consequências. O vício é característico de todas as paixões. Começa sempre quando o objecto de adoração nos administra uma dose de alucinogénia de algo que nem sequer nos atrevíamos a admitir que queriamos, por exemplo, uma dose de amor tempestuoso e excitação ruidosa. Em breve, começamos a ansiar pela atenção intensa, com a ávida obcessão de qualquer drogado. Quando a droga é cortada, ficamos imediatamente nauseados, loucos e vazios (para não falar no rancor contra o traficante que encorajou aquele vício, mas que agora se recusa a fornecer o material, apesar de sabermos que ele o tem escondido algures porque costumava dá-lo de graça). A fase seguinte encontra-nos escanzelados e trémulos numa esquina, com a única certeza de que venderiamos a alma ou assaltaríamos os vizinhos só para ter aquela coisa mais uma vez. Entretanto, o objecto da nossa adoração sente agora repulsa por nós. Olha-nos como se fossemos alguém que nunca tivesse visto antes, muito menos alguém que tivesse amado outrora com grande paixão. O que é irónico é que é dificil censurá-lo por isso. Basta olharmos para nós e ver aquilo em que nos tornámos, uns seres patéticos que até nós próprios temos dificuldade em reconhecer.
É isso mesmo. Chegámos agora ao último destino da paixão: a inexorável perda da auto-estima.
O facto de hoje conseguir escrever calmamente sobre isto é a prova de que o tempo tudo cura, pois na altura não consegui aceitar tão bem as coisas. Perder o David logo depois de ter posto fim ao meu casamento e logo depois do terror que assolara a minha cidade e precisamente no periodo negro do divórcio, bem...era demasiado para mim.
Eu e o David contiuámos a ter momentos de grande divertimento e compatibilidade durante o dia, mas à noite, na cama, tornei-me na única sobrevivente de um Inverno nuclear enquanto ele se afastava visivelmentede mim, um pouco mais cada dia, como se fosse portadora de uma doença infecciosa. Acabei por recear a noite como se fosse a cave de um algoz. Deitava-me ao lado do belo corpo adormecido e inacessível de David e entrava numa espiral de pânico de solidão, cheia de pensamentos suicidas meticulosamente pormenorizados. Doía-me o corpo todo. Sentia-me como uma espécie de máquina com molas, suportando uma tensão muito superior à projectada, prestes a explodir e a pôr em risco quem estivesse ali por perto. Imaginava as partes do meu corpo a saltarem do meu tronco, na tentativa de escaparem ao vulcão da infelicidade em que me tornara. Quase todas as manhãs, ao acordar, o David dava comigo a dormir no chão, ao lado da cama, aninhada num monte de toalhas turcas, como um cão.
"O que foi agora?, perguntava ele. Mais um homem que eu conseguira deixar totalmente esgotado.

Oh, mas nem tudo foi mau durante esse tempo...
Como Deus não nos bate com uma porta na cara sem primeiro abrir uma janela, aconteceram-me algumas coisas maravilhosas à sombra de toda essa mágoa. Por um lado, comecei finalmente a aprender italiano. Além disso conheci uma guru indiana. Por fim, fui convidada por um velho curandeiro a ir viver com ele na Indonésia.
Passo a explicar por ordem durante este livro...
As coisas começaram a melhorar um pouco quando saí de casa do David, no início de 2002, e me mudei pela primeira vez na vida para um apartamento MEU. Pintei as paredes com as cores mais quentes que consegui encontrar e comprava flores todas as semanas, como se fosse visitar-me a mim própria ao hospital. A minha irmã ofereceu-me uma botija de água quente para a casa nova (para não de ficar sozinha numa cama fria) e eu dormir com aquilo encostado ao coração todas as noites, como quem cuida de uma lesão desportiva.
O David e eu tinhamos rompido definitivamente. Ou talvez não. É dificil lembrar-me agora do número de vezes que rompemos e voltámos a juntar-nos ao longo desses meses. Mas havia um padrão: eu separava-me do David, recuperava a força e a confiança, e depois (atraído como sempre pela minha força e confiança) a sua paixão por mim reacendia. De forma respeitosa, sóbria e inteligente, discutiamos a possibilidade de tentar novamente, sempre com algum plano para minimizar as nossas aparentes incompatibilidades. Estávamos tão empenhados em resolver as coisas... Como é que duas pessoas tão apaixonadas podiam deixar de ter um final feliz? Tinha de funcionar . De novo reunidos e esperançosos, partilhávamos alguns dias de uma felicidade delirante. Às vezes até mesmo semanas. Mas o David acabava por recuar uma vez mais e eu prendia-o (ou eu prendia-o e ele recuava - nunca percebemos como se desencadeava a situação) e eu acabava novamente destruída. E ele acabava por ir embora.
Mas durante os períodos em que estávamos separados, lá ia praticando a arte de viver sozinha, por mais difícil que fosse. E esta experiência estava a operar uma mudança interior. Começava a sentir que, embora a minha vida continuasse a parecer-se com um choque em cadeia durante a hora de ponta, estava à beira de me tornar independente. Quando não me sentia suicida em relação ao meu divórcio, ou suicida em relação ao drama com o David, ficava maravilhada com todos os compartimentos de tempo e espaço que iam aparecendo nos meus dias, durante os quais podia fazer a mim mesma esta pergunta radicalmente nova: O que queres fazer Liz? "

Elizabeth Gilbert in "Comer, Orar, Amar - As aventuras de uma mulher à procura de tudo em Itália, na Índia e na Indonésia"

Para todos nós que já vivemos tempos de grandes mudanças na vida, para todos nós que já sofremos por um grande amor (ou paixão), para todos nós que já sentimos cá dentro o desconforto de nem de nós próprios gostarmos bem, de nem mais nos reconhecermos...
E para todos nós que saímos dessa tristeza, superámos, lutámos, viemos a cima e continuámos um caminho mais fortes e mais inteiros.

(Música para este post, uma música de agradecimento a tudo na vida... Porque tudo faz parte, porque tudo nos ajuda a chegar um passo mais à frente em conhecimento, em encontrarmos o nosso verdadeiro Eu: http://www.youtube.com/watch?v=OOgpT5rEKIU )

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